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15.10.01



Toda noite, quando fecho os olhos para dormir, Deus acende seus belos refletores de vertigem sobre mim, acomodo meu cérebro num travesseiro de flores, e vejo encantado no verso das pálpebras a última imagem do dia glorioso que acabei de viver.

E a legenda me dizendo amarela: “To Be Continued”.

Começar a escrever um livro sempre me parece mais difícil que escrevê-lo todo. Mas, depois que li o Retrato do Artista quando jovem e vi como Joyce começou, criei coragem.
Principalmente agora, que da vida só temos o resto.

“Memento mori” — sussura Deus.

É fatal.

Olho na engrenagem do espelho profundo e pergunto:

— Será que existe um outro modo de ser feliz?

Fico pensando e acabo sonhando.
Sonho tão alto que o próprio barulho me acorda.
E me desperto perguntando se há no mundo melhor coisa que ser feliz. Vejo estrelas no teto, repito a oração como se fosse reza e me espreguiço gaiarsa, felino, gostoso — sorrindo. Mas me levanto só depois que gargalho. Se não acho motivos para gargalhar também não os acho para levantar. Enquanto isso, faço contas complicadas de cabeça, abraço a Vênus de Milo, calculo logaritmos a olho, traduzo algumas frases do latim, reconstruo mentalmente um ranchinho de sapé, imagino cúpulas geodésicas no quintal da nossa casa, visualizo Marlon Brando sem destino. Acordo fazendo ginástica com o meu cérebro, não quero teias de aranha nos neurônios. E sinapses, só as brilhantes me excitam. Potencializo-as com lógica e amor.

(Toda emoção, você sabe, é produto do raciocínio.)

Acordo e me levanto, deslumbrado e respirando, cheio portanto de luz — iluminado de novo — e de mim.

Meus dias começam assim.

Viro construtor de pirâmides.

“Não sei o que dói mais...” — eu adoro fazer comparações. As palavras já nascem madrugantes na minha língua portuguesa. No meu pensamento. Crio analogias. Invento coisas.

E continuo não sabendo o que dói mais.

“Se é o castigo pelo desejo realizado, puro, livre, satisfeito — ou se o mesmo desejo sufocado no peito, contido, esmagando a minha alma...”

— Não sei o que dói mais!

É o dilema entre exercer a liberdade ou viver na escravidão. Daqui a pouco eu volto a falar desse assunto. (Deu uma vontade de escrever “capoquinho eu vórto a proseá essas coisa...” — como se eu estivesse em Dublin). Sinceramente, não sei.

Só sei que, aos treze anos, menino ainda, sentado no cinema do interior, acabei misturando Pitágoras, Pasolini, Antonio Visconti, Samuel Barbosa e Sônia Maria Fernandes para fazer uma promessa: “Todas as minhas relações de amor serão triangulares: eu, o outro — e a liberdade.”
A relação é um tripé, e dasaba se um deles faltar.

Mas já notou que entre você e a liberdade sempre existe um muro, baixo, feito de tijolos e ciumentos? Salte logo essa barreira: a vida está lá do outro lado!
— É impossível ser feliz sem liberdade.

Pensei que esse assunto só viria mais tarde, mas tem que ser agora. Afinal, você pode sofrer um colapso na página dez e morrer sem saber o que eu digo. Ser transformado em cinzas por um ataque suicida, ou levar tiro de um ciumento, quem sabe.

Enfim... O que eu digo não é uma provocação: é um desafio emocionante: é a possibilidade aberta de escolher o próprio caminho na vida. Nada mais — nada menos! É um convite à transformação pessoal. A busca por algo fundamental à dignidade humana.

O que proponho vai no sentido de romper com esse marasmo em que tua vida se transformou. Uma radical e consciente ruptura com essas normas morais injustas, e com tudo o que de alguma forma te oprime e faz sofrer.
Você hoje mais tosse do que ri...

Só quando assumes ter um dono é que ficas dispensado de lutar.

Até peço ajuda a uma segunda pessoa para te chamar à Razão. Ser escravo é muito fácil: qualquer idiota consegue. Reaja!

(O que eu digo é mais ou menos isso. Até o fim do livro vai ser esse o assunto. Até o fim dos meus dias vou ficar falando dessas coisas. E se a você não interessam tais assuntos, feche o livro e me abandone. Se não puder me dar atenção me dê sossego!)


Um outro dia, ainda adolescente, quando estava começando a entender a vida, escrevi minha definição de amor.

“Amar é sempre permitir, é deixar que o outro vá — ou que fique, se assim o desejar. Amar é ter respeito absoluto pela própria liberdade e pela liberdade do outro. Amar é compreender sempre. E isso não significa só entendimento racional, vai além, muito além: Amar é reconhecer afetuosamente o direito que o outro tem de fazer suas escolhas.
(Mesmo que as escolhas eventualmente me excluam.)

Quem não concorda com tal idéia de amor não merece o meu.
Aliás, eu recuso o amor de quem não ama a própria liberdade antes mesmo de me amar.
Porque o amor tem que ser livre — em todos os sentidos.

E toda mudança, você sabe, requer um plano.

À vezes, plano esboçado em folha de papel, outras vezes, plano intuído no cérebro do homem. Mas a mudança mais gostosa é aquela que só requer plano inclinado, por onde vamos escorregando em óleo de amêndoas como se fosse no corpo de um grande amor, deslizamos até a borda — e então saltamos no vazio do belo escuro profundo da vida.

Quando as coisas resistem às idéias e o mundo resiste aos sonhos — não devemos mudar de sonhos nem mudar de idéias: temos é que mudar de coisas e mudar de mundo.

(Ah, “Memento mori” quer dizer “lembra-te que morrerás”.)

Eu gosto de mudar. Descendo de Heráclito!
— Só o que está morto não muda.

Sempre troco um grande entusiasmo por outro maior ainda.

Amores, vou tê-los muitos para que os tenha sempre — esta, a melhor filosofia. Ousei amar diferente, tive coragem de continuar puro nos meus relacionamentos. Alguns querem punir-me por tanto, mas sobrevivo, sobre todos. E o que mais indigna meus detratores é que há lirismo na minha obscenidade.

São poéticas as minhas trangressões.

Quando enfio a cabeça pela janela da parede da vida, já não sei se estou olhando para fora de mim ou para dentro. E mergulho nessa alegre correnteza interna onde eu rio fluente de mim mesmo — líqüido, cristalino, vibrante.
Por isso eu digo.
Nunca deixarei de ser jovem: há minas no meu coração.
Mesmo quando tiver mais idade, serei um véio de ouro, e as garimpeiras de amor sempre vão querer me encontrar.

Sei que preciso acelerar o acontecer das circunstâncias, tenho que aumentar o tamanho e a freqüência dos fatos que me circundam, trazer Deus em pessoa para jantar comigo às vezes, tomar um vinho com Ele, inundá-Lo de carinho e gratidão.
— À luz de velas!

Deus sempre foi generoso comigo, mas.
Tenho que resistir aos ataques da mediocridade quotidiana e me afastar da jacarezada. Quero encher de glória os buraquinhos que os ratos pensam fazer no pão da minha vida. Preciso reagir, tornar-me um subversivo, abandonar as hienas, jogar fora tudo o que não presta, refinar as relações, multiplicar o que me eleva.

Sei que o principal sobrenome do amor é ilusão.

E sei também que ser livre é fundamental.

Portanto, se eu tiver que um dia me desfazer de todos os meus bens, a liberdade será o último deles.

Quanto ao que penso sobre meus amores, disse quase tudo livro “Perguntas que a mulher faz quando sonha”.

Devo deixar claro que valorizo uma mulher não só pelos prazeres que posso ter ao seu lado, mas principalmente por aqueles que deixo de ter por causa dela.

Já me casei quatro ou cinco vezes e continuo achando que o casamento é o túmulo do amor.

O cemitério das paixões...

— Por isso continuo solteiro!

O casamento é uma velha escola em ruínas que só tem duas matérias: sadismo e masoquismo.
(Dos dois lados.)

E casamento indissolúvel é pior do que prisão perpétua!

Sou observador.

Tem dias que vejo uma procissão de formigas em direção a um saco de lixo — e me lembro de vocês: trabalhando, cumprindo horários, correndo muito, seguindo regras tolas, mansos, ordeiros, pacatos, oprimidos em grupo, submetidos, uniformizados.
U-ni-for-mi-za-dos!

— E sendo “felizes”, cada qual à sua maneira...

Passam-me a impressão de que põem uma dose de fúria nessa busca cotidiana do nada. Se agitam como em vias de alcançar o céu. No fundo, se esperneiam, mas não olham sequer para cima. Por isso não sei mais se o que sinto por vocês é pena ou desprezo.

Só não creio que possam mudar de verdade — de verdade.

Parecem moscas sobrevoando um monte daquela coisa...
De vez em quando se mexem, coitados, mas se mexem pouco, timidamente. Nessa agitação aparente não querem turbulências nem riscos: meros movimentos de acomodação. Me parece que estão por demais atolados nessa meleca gosmenta que chamam de vida, e der tal forma envolvidos com coisas tão rasteiras, tão vãs, tão minúsculas, que só me resta dar-lhes um digno — e definitivo — adeus.

Doentes!

Não devo mesmo ter dó de vocês, porque só me daria pena o doente que não tem o remédio diante de si.
(É compreensível, como diz Montaigne.)

Vocês discordarão de muitas coisas que aqui vão ler. Muitas. Afinal, cada um de nós tem seu próprio tempo, seu sistema de valo-res, sua própria maneira de julgar um fato, de analisar fenômenos, de encontrar saídas. Cada um de nós tem sua particular visão do mundo, intransferível, única, exclusiva. Cada um tem suas idéias de verdade, de justiça, de amor, de religião.
Cada um de nós tem seu próprio modo de se salvar.
(— Ou de se foder.)

Cada um de nós é um ser único. Mas interagimos, em nome de alguma filosofia, de um negócio, de um deus, um projeto, uma causa. E existem atributos que que nos elevam à categoria de humanos: inteligência, amor, criatividade, compreensão, espontaneidade. Tudo isso deixa a vida mais fascinante ainda. E o que é melhor: a vida que merecemos viver só depende de nós.

Quero que você abandone as verdades recebidas por herança ou por contágio, e passe a pensar com independência.

Se chegou até aqui (não só neste livro mas na vida), é porque você deve ter aí na cavidade do crânio uma parte do sistema nervoso central chamada encéfalo — que abrange o cérebro, o cerebelo, pedúnculos e coisas que nem sei. Essa máquina sensível requer cuidadosa manutenção, precisa de carinho, tempo, leitura, dedicação, liberdade.
Não permita portanto que joguem lixo no teu cérebro.
Lembre-se para o resto da vida:

Nada grandioso foi criado até hoje na história do mundo sem paixão, ousadia, inteligência, loucura — e liberdade
.

E eu só entendo a liberdade como liberdade de mudar de vida.
(Qualquer outra que não essa será pouca.)
Por isso, reaja!
Mude.
Mas comece devagar...

(Vou te mostrar este poema todo.)

Acesse www.poesia.com.br. E Mude de verdade!

Ou experimente ler meu livro Manual da Separação

Veja alguns breves ensaios poéticos sobre o Amor e a Loucura



Mesmo que você já tenha encontrado seu suposto melhor lugar na vida, procure outro. Se ainda não achou o melhor caminho, continue procurando-o. E após ter certeza absoluta de tê-lo encontrado, ainda assim procure outro.

A pior coisa da vida é a estagnação — não pare nem mesmo quando estiver no pico que você suponha ser o mais alto. Porque sempre será possível ir além.

A vida tem milhares de caminhos possíveis.
Reaja!

Qualquer futuro é melhor do que qualquer passado.

Fico pensando sobre o que já disse:

Brigar comigo — e vencer — são coisas contraditórias, mutuamente excludentes. Há que se escolher uma delas.


Sou Deus quando me armo de fúria e perdôo quem me ofende. Porque Deus está dentro de mim e fúria só é o nome de um silogismo. Quando se trata de uma história de amor, e não apenas, todo processo deve ter três instâncias básicas: verificação, avaliação, e julgamento. E só depois — conforme o caso — condenar ou absolver.

Mas alguns não passam pelos estágios racionais, e condenam logo de cara, sem considerar a presunção da inocência. Alguns não se preocupam com a própria reputação intelectual.

É a vida, você sabe.

Mas a morte é um cavalo que trota encilhado ao lado da gente, e nos olha por baixo do tapa, convidando.

(Sempre recusei.)



— Morrer é a última coisa que eu quero fazer na Vida!


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