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18.11.01


Jupiter com guaraná.

Minha mãe, dizendo o que sentiu ao lado do caixão do marido, que por acaso era meu pai:

"Eu só tinha medo de que não chorasse. Depois que chorei, foi como se cumprisse um dever. Ufa! Fiquei com medo de rir da cara dele, estatelado ali no caixão. Mas parte do meu choro foi além da coreografia, um pouco era verdade. Mas chorei muito mais por mim do que por ele. Chorei por ter sido tão ingênua, tanto tempo: ficava sozinha com onze crianças, a menor com seis anos. E ele sai de cena justo agora... Nessa mistura de alívio e incertezas, derramei umas gotinhas.”

Era o que se esperava dela naquele momento.

— Fiz o que pude — confessa.

Que ela o amou de verdade, sabemos. Mas o tempo enferruja todas as engrenagens do amor.

Fico pensando.

Meu pai morreu de ataque cardíaco. Meu avô, bisavô, tataravô, seu pai e o pai do pai dele, todos os meus antepassados morreram de ataque cardíaco. Meus tios e primos — da primeira, segunda e terceira geração, também. Meu irmão, ameaçado. Até cunhado meu anda morrendo de ataque cardíaco.

E aqueles que não morrem de ataque cardíaco acabam indo parar no hospício...

Tenho, portanto, que romper com a tradição.

(Mais uma vez!)

Acho que meu pai bebia não para ficar alegre, mas para esquecer tristezas. Acontece que o coração dele era movido a tristezas, e quando as perdia se desesperava, tornando-se triste de novo por tê-las perdido e para tê-las de volta outra vez.

Era um círculo vicioso reduzido ao infinito.

Ele sempre me concedia dois direitos: respirar, e ser escravo — mas só o segundo era exercido plenamente. Quando Júpiter visitava-lhe o peito, me dava bolachas com guaraná. E quando Júpiter se ia, ele me dava bolachas com ódio. As primeiras, de trigo, se esfarelavam com amor na minha boca criança. As segundas, de palma, produziam feridas no meu ego. Naquela fase, ódio, guaraná e bolachas foram se alternando, cada vez mais.

A guaraná eu bebia, mas o ódio — o ódio eu devolvia!

Por isso que aos treze anos tive que "matar" meu pai. Vou descrever a cena, falar das pressões, do amor, da família. Como era tudo fruto da minha imaginação, descobri que nunca seria um assassino, porque já era um escritor. Consegui cortar-lhe a cabeça num só golpe de machadinho de açougueiro mas não fui capaz de quebrar as regras da gramática.

(O texto ficou vermelho, manchado de sangue.)

Psicanaliso-me.

Será que não o matamos, nós mesmos, com ódios escondidos, vontades submersas naquela brutal atmosfera de opressão, olhares desafiadores atirados por toda parte? Será que não o matamos com risos crepitantes, fugas cotidianas, alegria inesgotável, e aquele nosso escandaloso amor à liberdade que ele nem supunha ser possível? Será que nós não o matamos — felizmente?

(No atestado de óbito se lê infarto do miocárdio. Mas quem o matou mesmo foi o médico que tinha morte no próprio nome, Samir. Fez diagnóstico por telefone, o irresponsável, e errou longe na terapia que prescreveu. Um charlatão de vilarejo!)

Ou será que não morreu de tristeza ao descobrir que agia errado ao nos prender? Terá sido desgosto pela vida? O que sabemos é que acabou mergulhado em álcool, pressa, gorduras e gritos. Continuasse vivo, nosso pai seria para sempre um enigma cruel.

Tinha seu lado bom, é claro.

Certa noite chamaram a polícia, uma denúncia: havia menores numa casa de prostitutas. Ele era o delegado suplente, um cargo que ganhara do governador Ademar de Barros. O soldado Diomedes Cavalcante dirigindo o jipe, lá foram ambos fazer o flagrante, “resgatar a moral da sociedade”. (Diomedes, se não me engano, filho de Tadeu, foi educado pelo centauro Quíron, comandou os etólios no cerco de Tróia. E foi na escola de Quíron, vocês sabem, que Hércules aprendeu Medicina, Música e Justiça — mas essa é outra história grega). Assim que chegaram meu pai gritou:

“— Fechem as portas. E que ninguém saia!”

Pessoas corriam, alguns pediam por favor seu Luizito, eram homens de bem, pais de família, senhores respeitáveis...

Então, surpreendente, meu delegado preferido grita ainda mais alto:

“— Hoje é tudo por minha conta, putada!...”

E bebeu a noite inteira.

Era um Zorba, espontâneo, com uma naturalidade que ficava no limite do vulgar, porque ao coitado lhe faltava cultura. Zorba, sim — mas com onze filhos pequenos e um Olimpo de compromissos, duplicatas a pagar, alicerces meio abertos, paredes quase erguidas. Saldo negativo no banco, e pretensões de cobri-lo. Comia apressado demais e sempre perdia a calma: só podia mesmo morrer de enfarte do miocárdio.

Mas era um grande homem: “fechava” até zona!

Quando chegou em nossa casa na manhã seguinte eu estava escrevendo numa folha de papel de embrulho um poema de amor, mentalmente dedicado a Sonia Maria, e que terminava assim:

“Depois de acender estrelas no teu céu da boca, depois de vasculhar os teus encantos, depois de ultrapassar os teus limites, acabei concluindo que só a união de duas grandes espontaneidades pode gerar e manter, por algum tempo, um belo caso de amor”.

Ainda meio bêbado, leu duas vezes em voz alta, passou a mão carinhosa na minha cabeça e, antes de ir para o seu quarto, rosnou um elogio inesperado: “Bonito! Escreva mais, filho, escreva mais...”

Nunca nos disse que gostava de poesia, mas certa vez mandou que plantassem trezentos e sessenta pés de girassol no fundo do quintal. Exagerado! Depois que as plantas cresceram, ele ficava todos os dias lá no fundo, sentado num banquinho de madeira, sorrindo, olhando os girassóis girarem.

Ele — no fundo — talvez fosse um poeta, mas nunca nos contou.

Quando morreu, morreram as circunstâncias carcereiras de si mesmas que eu trazia no meu peito.

Embora houvesse ainda um monte de coisas não resolvidas, penduradas num passado que teimava em resistir, foi fatal o tipo de adeus que nos ligou aquele dia. Antigas imagens opressoras se apagaram com o tempo, uma a uma. Tudo de mal se havia ido antes dele, ficando livre o terreno para que pudéssemos os filhos talvez amá-lo um pouco. Vivíamos uma suspensão temporária das hostilidades, uma espécie de paz armada, com certas escaramuças de vez em quando na fronteira.

As lembranças mais recentes eram brandas, quase delicadas, com exceção do excesso de álcool e de algumas ilusões.

Claro que foi chocante sua partida, e a forma como se deu.

Assim como a nossa, a vida dele era um jogo — e o perdeu.

(Quando descasco a cebola da existência meus olhos ardem.)

Mesmo as oito horas que se passaram entre a ciência da sua morte e a visão do cadáver por sobre a mesa não foram suficientes para acalmar meu coração alvoroçado. Embora vencedores, os filhos trazíamos na boca um amargo sabor de derrota: talvez um maior inimigo já estivesse à espreita das crianças que éramos então.

Imprescindível seria o retorno da mãe que pensava em morrer para salvar-se da vida.

Minha mãe arrumou-me a cama em que ele dormia, no quarto que fora meu quando morava lá. Cumprindo ordens de um deus que só ela ouvia, puxou-me pelas mãos quase chorando naquela noite e me disse, séria — não como mandasse, nem como pedisse:

— Você dorme aqui.

Olhei para o duplo símbolo de morte, vazio que esteve antes de mim, agora bem arrumado — e com amor, pela mulher que passou a ser viúva de si antes mesmo de morrer o marido.

(Era como se passasse creme nos meus pés rachados...)

De novo olhei firme para a cama e o lençol de metáforas que a cobria, e aceitei jogar ali por um dia o meu corpo.

Mas disse à minha alma assustada:

— Vai-te agora para bem longe daqui!

Voa, alma, voa rápido — mas volta, por favor, volta buscar-me amanhã de manhã!

(Ela voltou.)

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O que você leu acima é o capítulo 14 do meu livro Solidão a Mil.
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