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14.3.02


Toda noite, quando fecho os olhos para dormir, Deus acende seus belos refletores de vertigem sobre mim, acomodo meu cérebro num travesseiro de flores, e vejo encantado no verso das pálpebras a última imagem do dia glorioso que acabei de viver. E a legenda me dizendo amarela: “To Be Continued”. Começar a escrever um livro sempre me parece mais difícil que escrevê-lo todo. Mas, depois que li o Retrato do Artista quando jovem e vi como Joyce começou, criei coragem. Principalmente agora, que da vida só temos o resto.

“Memento mori” — sussura Deus.

É fatal.

Olho na engrenagem do espelho profundo e pergunto:
— Será que existe um outro modo de ser feliz?
Fico pensando e acabo sonhando.
Sonho tão alto que o próprio barulho me acorda.
E me desperto perguntando se há no mundo melhor coisa que ser feliz. Vejo estrelas no teto, repito a oração como se fosse reza e me espreguiço gaiarsa, felino, gostoso — sorrindo. Mas me levanto só depois que gargalho. Se não acho motivos para gargalhar também não os acho para levantar. Enquanto isso, faço contas complicadas de cabeça, abraço a Vênus de Milo, calculo logaritmos a olho, traduzo algumas frases do latim, reconstruo mentalmente um ranchinho de sapé, imagino cúpulas geodésicas no quintal da nossa casa, visualizo Marlon Brando sem destino. Acordo fazendo ginástica com o meu cérebro, não quero teias de aranha nos neurônios. E sinapses, só as brilhantes me excitam. Potencializo-as com lógica e amor.

(Toda emoção, você sabe, é produto do raciocínio.)

Acordo e me levanto, deslumbrado e respirando, cheio portanto de luz — iluminado de novo — e de mim.

Meus dias começam assim...

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