Páginas

18.2.10

os girassóis do meu pai



Meu pai nunca nos disse que gostava de poesia, mas certa vez mandou que plantassem trezentos e sessenta pés de girassol no fundo do quintal. Depois que as plantas cresceram ele ficava todos os dias lá no fundo, sentado feito Cazuza num banquinho de madeira, sorrindo, olhando os girassóis girarem. Ele — no fundo, no fundo — talvez fosse um poeta, mas nunca nos contou.

Quando morreu, morreram as circunstâncias carcereiras de si mesmas que eu trazia no meu peito. Embora houvesse ainda entre nós um monte de coisas não resolvidas, penduradas num passado que teimava em resistir, foi fatal o tipo de adeus que nos ligou aquele dia. Antigas imagens opressoras se apagaram com o tempo, uma a uma. Tudo que de mal havia foi-se antes, ficando livre o terreno para que pudéssemos talvez amá-lo um pouquinho. Vivíamos uma suspensão temporária das hostilidades, uma espécie de paz armada, com certas escaramuças de vez em quando na fronteira do nosso amor.

As lembranças mais recentes eram brandas, quase delicadas, com exceção de algumas inocentes ilusões. Claro que foi chocante sua partida, a forma como se deu. Assim como a nossa, a vida dele era um jogo — e o perdeu.

Nenhum comentário: